Eduardo Kokubun - Unesp/Rio Claro
Ouvi a piada quando eu era estudante do colegial. Um prefeito queria construir uma caixa d'água em seu município. Porém, ao ser informado que a Lei da gravidade de Newton impediria tal obra, ele teria mandado revogar essa Lei. Como adolescentes nos divertíamos em imaginar como seria o mundo sem a força gravitacional? Sem força a nos puxar de volta para o chão, poderíamos flutuar e desfrutar da liberdade de voar como pássaros. Alguém lembrou que sem gravidade, o ar atmosférico com o oxigênio essencial para nossa vida escaparia para o espaço e morreríamos. Outros alegavam que sem gravidade a terra não seria uma esfera e toda matéria terrestre se dispersaria como poeira no espaço.
Anos mais tarde, já com os acervos dos jornais disponíveis na internet soube que a piada não era piada, mas sim uma notícia publicada no jornal "O Estado de São Paulo" em 09/06/1971.
Tentativas de "revogar" leis e explicações científicas com canetadas não são raras. Em 2007, outro prefeito, cansado das cobranças da Câmara Municipal para resolver o problema de enchente na cidade, enviou projeto de lei "proibindo enchentes". Num outro caso mais conhecido mundialmente, Galileu Galilei foi condenado por heresia no século XVII ao afirmar que a terra girava em torno do sol, contrariando a posição da Igreja Católica. Galileu, observando corpos celestes com o telescópio que ele construiu, confirmou e aperfeiçoou a teoria desenvolvida anteriormente por Nicolau Copérnico e Johannes Kepler. Visto da Terra a trajetória dos planetas são muito complexos, ora avançando no mesmo sentido do movimento do sol e da lua, ora exibindo movimento retrógrado em sentido contrário.
Segundo a teoria heliocêntrica desenvolvida por Copérnico, Kepler e Galileu, o movimento retrógrado dos planetas poderia ser explicada colocando a Terra girando em torno do Sol. É uma teoria mais simples, mais elegante e mais robusta do que a teoria geocêntrica defendida pela Igreja naquela época, que dizia ser a Terra o centro do Universo.
Esta semana foi movimentada por uma Nota Técnica assinada por um Secretário do Ministério da Saúde com uma tabela insinuando de que o tratamento o "kit covid" era eficaz para o tratamento da Covid-19 mas a vacina que já foi aplicada em 75% dos brasileiros não era. Embora a tabela tenha sido retirada poucos dias depois, as demais partes continuam inalteradas. A Nota alega que a Secretaria tem competência legal para decidir sobre assuntos técnicos e explica os fundamentos para avaliar a qualidade de evidências científicas.
O documento é tortuoso como o movimento dos planetas visto daqui da Terra, misturando considerações jurídicas e científicas, algumas delas corretas quando vistas isoladamente. Porém, como se aprende no treinamento científico, um conjunto de premissas verdadeiras não garante um argumento sólido ou correto. Além disso, a Nota se apoia em estudos cientificamente frágeis quando justifica a evidência a favor do "kit covid", além de alegar que o debate científico sobre o tema estaria contaminado por discurso ideológico.
Proposições científicas devem ser debatidos considerando premissas científicas. Utilizar-se de proposições jurídicas ou ideológicas para refutar achados científicos é como tentar juntar água com óleo: são imiscíveis, incompatíveis entre si. É querer revogar a Lei da Gravidade para fazer a água correr cachoeira acima. É inverter a rotação da Terra na velocidade superior à da luz para ressuscitar a musa do Super-Homem. Possível apenas no universo da ficção, mas incabível no mundo real.
A Nota Técnica tem o mesmo efeito de um Decreto que proíba a circulação do vírus Sars-Cov-2 em todo território Nacional. Uma piada.
Vereador quer mulher no lar. O Estado de São Paulo, 09/06/1971. <https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19710609-20501-nac-0040-999-40-not/> Acesso em 26/01/2022.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde. NOTA TÉCNICA Nº 2/2022-SCTIE/MS. Brasília-DF, 20/01/2022. <http://conitec.gov.br/images/Audiencias_Publicas/Nota_tecnica_n2_2022_SCTIE-MS.pdf> Acesso em 26/01/2022.
Prefeito de Aparecida (SP) tenta proibir enchentes por decreto. G1, São Paulo, 03/01/2007. <https://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,AA1407908-5605,00-PREFEITO+DE+APARECIDA+SP+TENTA+PROIBIR+ENCHENTES+POR+DECRETO.html> Acesso em 26/01/2022.
Nenhum comentário:
Postar um comentário